Benefícios de enganar os outros
Não estamos a mentir ao afirmar que Robert Trivers sabe tudo sobre o engano e o autoengano, armas de dois gumes que a seleção natural colocou à nossa disposição. Para quê?
Para o biólogo norte-americano Robert Trivers, o mundo estruturou-se em redor da mentira. Nas suas palestras, dá mostras de um grande sentido de humor enquanto explica que o engano desempenhou um papel tão fundamental na evolução de todos os organismos, incluindo os seres humanos, que, sem ele, a natureza não existiria. A fim de ilustrá-lo, costuma brincar descrevendo uma cena com todo o dramatismo: vê uma mulher atraente que caminha pelo passeio, junto de uma montra, e aproxima-se dela, inchado como um peru, na esperança de que lhe permita andar a seu lado. “Nessa altura, olho para a montra e que vejo refletido? Um pobre e feio velho, que não caminha mas se arrasta. E apercebo-me de que sou eu.”
Tal como indica este cientista da Universidade de Rutgers (Estados Unidos), a tendência para nos enganarmos a nós próprios torna-se irresistível. Todavia, qual é a sua razão de ser em termos de evolução e na natureza? No seu novo livro, The Folly of Fools (“A Loucura dos Loucos”), com o subtítulo “Lógica do engano e do autoengano na vida humana”, oferece exemplos de pequenos organismos, como vírus e bactérias, que se disfarçam para despistarem as nossas defesas.
Assim, o HIV altera a sua capa de proteínas para se tornar inexpugnável ao sistema imunológico. Muitos predadores mimetizam-se com o meio para se tornarem invisíveis para as vítimas, como os camaleões ou os peixes que se camuflam sobre a areia do fundo marinho, e há espécies que adotam as cores das serpentes ou de outros animais venenosos para fazerem os inimigos crerem que dispõem de uma arma letal inexistente.
“Do ponto de vista evolutivo, mentir a alguém proporciona sempre uma vantagem enquanto não se é descoberto. Posso vigarizá-lo a si para obter dinheiro, ou dizer à minha parceira que só a desejo a ela para tirar proveito”, explica Trivers, acrescentando: “Em contrapartida, o autoengano implica um dilema que remonta aos primeiros filósofos e religiões. Por que mentimos a nós próprios? Se lhe consigo sacar 50 euros, o benefício é óbvio, mas o que ganho ao tirar algumas notas do meu bolso esquerdo para as colocar no direito?”
Esta questão perturbava Trivers quando estava a iniciar a sua profissão de investigador: o autoengano está tão presente no quotidiano, nas decisões políticas, nas falsas narrativas, nas bolsas, nas crises economicas, nas guerras ou nos acidentes aéreos que é difícil conceber que as coisas se possam passar de outra forma. É certo que proporciona vantagens ao indivíduo, mas tem um preço elevado. O que se ganha com a destruição da verdade?
Tática de ataque
Em 1972, deu com a solução, que lançou uma nova luz no estudo deste comportamento humano: “Mentirmos a nós próprios serve para enganar os outros de forma mais eficaz. Isto é, trata-se de uma estratégia de ataque, e não de um estratagema defensivo”, como pensavam os psicólogos tradicionais, com o pretexto de proteger a felicidade e reforçar o otimismo. “Isso é uma treta”, remata.
Trivers costuma citar diversas experiências que provam a tendência do cérebro para se enganar, como a de uma série de retratos computorizados do mesmo indivíduo, nos quais se vai tornando o rosto progressivamente mais feio através de técnicas de manipulação gráfica. Quando mostram à pessoa retratada versões mais favorecidas da sua cara, com uma subtil melhoria (20 por cento) das feições em comparação com a sua imagem real, leva 1,86 segundos a reconhecer-se.
O curioso é que, quando lhe apresentam a foto de como é na realidade, necessita de mais tempo: 2,06 segundos. E a réplica menos favorável é a que vence, pois o voluntário precisa de 2,18 segundos para se reconhecer. Ou seja, de forma inconsciente, falseamos a nossa percepção: “Pensamos que somos 20% mais atraentes do que acontece na realidade”, sublinha o antropólogo.
A mentira pode ser construída voluntária ou involuntariamente, e essa intencionalidade é fundamental, segundo o especialista: “Se mentir de propósito, à medida que o indivíduo se aproxima da palavra-chave, a ansiedade tende a disparar, ergue a voz ou esta fica mais aguda, e os nervos aumentam. Há uma carga cognitiva que pesa sobre a mentira, de forma que se deve suprimir a verdade e construir uma falácia na mente.
Por outro lado, se mentir inconscientemente, o cérebro está livre dessa carga. Em suma, enganar-se a si próprio torna a mentira credível.”
Por vezes, o autoengano manifesta-se naquilo que o nosso entrevistado denomina o “ego inchado”, um fenomeno habitual em muito âmbitos. Por exemplo, 80% dos estudantes do ensino secundário nos Estados Unidos consideram-se líderes nas curvas da estatística, o que obviamente não é possível.
Uma grande montagem
Os políticos também sabem bastante acerca da questão. Por exemplo, a guerra do Iraque em 2003 foi, segundo Trivers, uma farsa que começou com uma mentira consciente, seguida de um autoengano. A mentira intencional foi propagar que o regime de Saddam Hussein tinha armas de destruição maciça. “Nunca acreditei no que esses aldrabões diziam ao povo norte-americano; foi pura invenção para justificar a guerra”, afirma o especialista, sem dissimular a irritação.
Hans Blix, o inspetor sueco enviado pela ONU ao Iraque, perguntaria depois, quando o mundo verificou que as armas não existiam, como era possível que os norte-americanos estivessem cem por cento seguros da sua existência e, no entanto, ignorassem por completo a sua localização.
Com recurso a uma técnica de análise linguística inventada por James Pennebaker, da Universidade do Texas, foram comparadas declarações de líderes dos Estados Unidos em que falavam das armas de destruição maciça, de Bin Laden e de Saddam Hussein juntos numa cama, ou do último como sendo responsável pelos atentados de 11 de setembro de 2001, com outras que tinham feito sobre assuntos neutros, alheios à guerra.
Para Trivers, as palavras de todos eles “mostravam sinais de uma falácia consciente; quando alguém mente, o que faz é reduzir o uso da palavra “eu”, para se distanciar do enredo que criou”. Nesses casos, utiliza-se mais o plural (“nós”), para diluir responsabilidades, ou expressões vagas, como “a gente”, “eles”… A análise textual revela muito mais do que se diz: por exemplo, os poetas que utilizam a primeira pessoa do singular têm frequentemente maior tendência para se suicidarem.
Segundo Trivers, o passo seguinte na farsa do Iraque foi o autoengano, quando George Bush convenceu os seus aliados ocidentais de que ia ser um conflito relâmpago, quase sem custos humanos ou económicos, que os transformaria em heróis, libertaria os iraquianos da tirania e salvaria o mundo da ameaça terrorista.
A realidade tornou manifesto o ridículo daquelas projeções: 4000 baixas norte-americanas, mais de cem mil iraquianos mortos, incluindo muitos civis, e uma guerra que custou mais de dois biliões de dólares.
Instituições científicas e tecnológicas como a NASA também mentem a si próprias em certas ocasiões. Por exemplo, o vaivém espacial Challenger desfez-se em pedaços pouco depois de descolar devido a anomalias que já tinham sido registadas em voos anteriores, mas os peritos em segurança minimizaram os riscos, sob a pressão de tentar “vender” ao Congresso o projeto do shuttle, afirma Trivers.
Brincadeiras infantis
Neste aspeto, muitos acidentes de voos comerciais ocorreram devido a erros humanos em que se falseou a realidade, talvez sem intenção. Um caso dramático foi o do desastre do voo 593 da Aeroflot, em 1994, causado pela insensatez do comandante, que, após deixar os filhos entrarem na cabina, os encorajou a assumirem os comandos. Achou que o piloto automático funcionaria, mas não se apercebeu de que o filho mais velho exercia suficiente força na manete de comando para desativá-lo. Houve 94 mortos.
Noutros casos, a causa das catástrofes produz-se devido à indecisão dos responsáveis, num jogo de sucessivos autoenganos. Um velho amigo de Trivers, Robert Silberglied, morreu num avião que se despenhou no rio Potomac, em 1982. Quando o copiloto se preparava para descolar do aeroporto de Washington D.C., detetou uma deficiência nos instrumentos que mediam a velocidade. Embora tivesse praticamente a certeza de que havia problemas, em vez de abortar a descolagem, confrontou os dados várias vezes com o piloto, e este pensou que estavam certos.
Segundos depois, comprovaram ambos, horrorizados, que a velocidade era insuficiente, mas já era tarde.
No entanto, embora possa parecer paradoxal, a capacidade para tergiversar a realidade está relacionada com a inteligência, e não o contrário. No jogo da evolução, há uma competição entre o burlão e o burlado. Uma das vantagens dessa luta é que a deteção de mentiras favorece o intelecto.
Aqui, é lícito perguntar se somos inteligentes porque enganamos, ou se enganamos porque somos inteligentes. “Vemos que as crianças de quatro anos espertas e saudáveis mentem mais”, afirma Trivers, acrescentando que os macacos que possuem um cérebro maior praticam a mentira com maior frequência. A seleção natural favoreceu os que enganavam melhor, e isso produziu novas aptidões mentais: “A capacidade de mentir tornou-nos mais inteligentes.” Para Trivers, o autoengano foi selecionado porque permitiu mentir melhor aos outros, apesar do preço que envolve desligar-se da realidade.
No entanto, embora proporcionem uma vantagem a nível individual, as consequências das mentiras podem ser extremamente dolorosas para o coletivo humano. Mais uma vez, a guerra do Iraque, com o seu cruel balanço, constitui um bom exemplo. “Quando os líderes políticos praticam o autoengano, morrem centenas de milhares de pessoas. É um preço muito elevado. Porém, o próprio líder não sofre qualquer castigo em termos biológicos”, afirma Trivers.
“George Bush vai deixar naquele país árabe um fator de fertilidade 110 vezes menor do que existia antes por causa dessa hecatombe. Mas a sua própria estirpe vai ser afetada? Não!”, prossegue o investigador. “Os historiadores escreverão, seguramente, que Bush foi um dos piores presidentes. Porém, será que isso significa que os seus descendentes vão ser afetados por usarem o apelido? Também não!” Portanto, quando falamos de custos e benefícios no aspeto evolutivo, “fazemo-lo ao nível do indivíduo”, acrescenta. “Isto é, são os filhos do mentiroso que poderão reproduzir-se e legar os seus genes, e não os filhos dos chacinados pelas bombas.”
em papas na língua
Nascido em Washington, em 1943, Robert Trivers aprendeu análise matemática aos 14 anos, a ler os livros do pai. Estudou biologia e, nos anos 70, publicou trabalhos geniais que ligavam a genética às ciências do comportamento, à antropologia e à medicina.
Licenciado em história e doutorado em biologia pela Universidade de Harvard, onde ensina psicologia, é também professor de antropologia e ciências biológicas na Universidade de Rutgers. Os seus estudos centram-se na teoria social baseada na seleção natural e no autoengano.
Trivers estabeleceu as bases da sociobiologia, e afirma que Edward O. Wilson, considerado o “pai” dessa disciplina, apenas inventou o termo. Criticou igualmente Dawkins por se apropriar das suas ideias sobre os genes egoístas. A revista Time incluiu-o na lista de pensadores mais importantes do século XX.
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